Ontem assisti "Moonlight", ou "Moonlight - Sob a luz do luar", longa de Barry Jenkins, escrito por ele e Tarell Alvin McCraney. Pra quem ainda não ligou o nome à pessoa, “Moonlighte” foi o vencedor do Oscar 2017 na categoria de Melhor Filme, fazendo parte da já famosa e épica palhaçada de troca de envelopes na 89.ª cerimônia de entrega dos Academy Awards.
Com produção datada de setembro de 2016 nos EUA e estreia bem fresquinha aqui no Brasil (23 de fevereiro de 2017 ), talvez, se não tivesse vencido a controversa categoria de Melhor Filme no Oscar 2017, nem aqui fosse exibido. “Moonlight” conta a história de Chiron, um garoto negro, pobre e gay, que mora na periferia de Miami, onde vive às turras juvenis, passa pelos processos existencialistas e dramáticos da adolescência e chega enfim na fase adulta definida por todas as suas experiências anteriores. Um início, um meio e um fim, como as nossas vidas geralmente são, e aquela sensação de que somos algo nesse universo, por mais contrária que seja a nossa definição e percepção do que realmente somos nesse universo.
Para entender o filme “Moonlight”, temos que ter por referência a história de Tarell Alvin McCraney, que na vida real foi o próprio Chiron, principal protagonista da história. O roteiro foi desenvolvido por ele a partir de sua peça inédita intitulada “In Moonlight Black Boys Look Blue”. Algo como “na luz da lua, meninos pretos são azuis", o que é explicado de forma delicada e poética em uma cena do filme. Tarell nos transporta inicialmente à sua infância pobre em Liberty City, periferia de Miami, onde conhecido como Little (Pequeno), foge pavorosamente de um bullying diário, convive com uma mãe viciada em crack e encontra na imagem de Juan, poderoso traficante do bairro, uma figura paterna e inspiradora. Com o passar dos anos, Little, já em sua adolescência, é chamado por seu nome, Chiron, mas ainda assim sofre bullying e passa por uma situação que irá mudar por definitivo sua vida. Adulto, conhecido como Black, já se encontra à imagem e semelhança de Juan em um contexto que nada o faz lembrar de seu sofrível e traumático passado ou até esse passado pintar de forma inesperada em sua vida.
Alex Hibbert, Chiron/Little na infância junta a Mahershala Ali, Juan, em uma das cenas mais lindas e emocionantes de "Moonlight"
Se fosse uma história óbvia, “Moonlight” poderia ser resumido em três atos com inicio, meio e fim, narrando através de suas escolhas e consequências a vida de um homem negro e pobre nos EUA. Mas aí, entra a beleza e a grande vertente dramática do filme: Little é perseguido por seus amiguinhos por sacarem sua orientação sexual: o menino é gay. Little encontra na figura de Juan a imagem de um pai que nunca teve. Juan, assim como sua namorada Teresa, encontram na figura de Little o filho que não tiveram. Paula, mãe de Little, se acaba nas drogas, mas tem plena consciência de que perde o amor do filho a cada dia. E Little vai aos poucos observando e crescendo dentro dessa realidade, cultivando traumas com grandes consequências para o seu futuro. E nós somos os expectadores dessa narrativa ao acompanhar a infância, adolescência e fase adulta de Little/Chiron/Black.
“Moonlight” é um filme de temática gay e ponto. A história gira em torno de um menino e a descoberta de sua orientação sexual e como o ambiente externo insurge nesse processo. Uma história como a que muitos gays, lésbicas, travestis e transexuais vivem ou já viveram por aí. Quem não se lembra das traumáticas aulas de educação física? Dos amiguinhos maldosos? De se sentir diferente e não saber o por quê? De descobrir aos poucos sensações de interesses pelo mesmo sexo, mas não entender de fato o que isso significa? Além de tudo, “Moonlight” é uma história sobre a solidão e sobre a procura desesperadora do amor. De uma forma ou de outra, todos os personagens querem ser amados ou querem amar alguém.
Ashton Sanders, Chiron na adolescência
O mais interessante de “Moonlight” é como o diretor Barry Jenkins constrói uma narrativa linear sob o roteiro de Tarell Alvin McCraney. Dividida em três capítulos, vemos a história de Chiron e sua vivência na infância, adolescência e fase adulta. E nós somos convidados a ligar as consequências e conclusões de cada fase do personagem. Consequentemente torcemos por ele. A empatia e ao mesmo tempo a revolta com certa conformidade é explicita no decorrer de nosso envolvimento com a história. E é bem desafiador perceber as nuances da direção de Jenkins a nos entregar uma história universal, que poderia acontecer em Miami, em São Paulo, ou em qualquer outro lugar do mundo. E por incrível que pareça, trata-se de um filme americano, mas sendo independente, tem uma estética típica de filmes que apostam muito mais em sua narrativa do que em didatismo de diálogos e imagens óbvias. Vemos um Chiron - quando criança chamado de Little, questionar por que o chamam de fag (viado) sem saber o que de fato isso significa. Vemos um Chiron quando adolescente, viver a necessidade de aceitação da idade e como acaba por lidar com situações extremas de bullying e quais são essas consequências. Vemos um Chiron - transformado em Black, na imagem e semelhança do traficante que um dia serviu de figura materna. E vemos um Chiron de deparar com seu passado e de despir de seu personagem quando uma história de seu passado se depara com seu presente. Apesar de um final digamos que otimista, “Moonlight” é um filme triste, que nos deixa e mãos atadas. Quando termina, fica na nossa cabeça, como está na minha até agora.
Trevante Rhodes, na fase adulta de Chiron/Black
Não posso terminar esse texto - e não uma critica, já que não tenho essa formação - sem falar do incrível elenco do filme. Coube a Alex Hibbert iniciar a saga de Chiron quando criança. Já Ashton Sanders na adolescência e Trevante Rhodes na fase adulta. Existe aí um trabalho incrível de preparação de elenco, pois vemos nas interpretações de cada um as características do personagem em suas respectivas fases, como se de fato ele tivesse crescido e vivido o que cada ator nos apresenta. Rhodes, por exemplo, ao interpretar um Chiron/Black adulto, nos remete de certa forma a seu comportamento quando criança. Uma citação de Kevin, um dos personagens de maior impacto na história de Chiron, nos confirma essa personalidade introspectiva ao afirmar que o rapaz, mesmo depois de adulto, ainda não consegue formar uma frase com mais de três palavras. Naomi Harris é outro grande destaque do longa ao interpretar a mãe de Chiron. Sua viciada em craque vai de encontro a um caminho nada óbvio, mas totalmente realista. Suas aparições nos contextualiza como a droga afeta diretamente sua relação com o filho. O silêncio de Little ao notar a ausência da TV na sala é revelador. Revelador também é o banho na banheira de Little. Revelador também é o desejo de Chiron por Kevin. E até a cantora Janelle Monáe, agora investindo em sua carreira de atriz e pegando papéis significativos nos surpreende. Janelle está no elenco de "Estrelas Além do Tempo", mas aqui, quase irreconhecível e de cabelão, vive Paula, a mãe adotiva de Chiron. E expressa todo o amor de mãe que o personagem necessita e não encontra em sua progenitora. Por fim e não menos importante, temos que louvar a participação de Mahershala Ali, na pele do traficante Juan. Sutil e forte, a presença de seu personagem na tela nos embriaga, assim como a Chiron. Com um trabalho de expressão super bem dirigido, Ali mostra uma certa humanidade em seu Juan. Merecidamente vencedor do Oscar de Melhor Ator Coadjovante. Na 89ª edição do Oscar, o filme recebeu as seguinte indicações: Melhor Filme (vencedor), Melhor Diretor, Melhor Ator Coadjuvante (vencedor), Melhor Atriz Coadjuvante (Naomi Harris), Melhor Roteiro Adaptado (vencedor), Melhor Trilha Sonora, Melhor Fotografia e Melhor Edição.
Por falar em prêmios, e sem entrar nos detalhes da palhaçada do Oscar, sim, “Moonlight” tem todo seu mérito, sendo um trabalho forte, que nos desperta a contemplação, que nos faz identificar com cada personagem, que nos faz torcer por uma reviravolta na vida de Chiron, que nos deprime, que nos alegra, que nos deixa em estado de choque e que por fim nos arrebata. Arrebatamento que fez com que Raf Simons, diretor criativo da Calvin Klein, colocasse todo o elenco masculino do filme na campanha de underwear de Verão 2017 da marca. Já falamos disso aqui no blog NLDJ. Isso antes das indicações, antes do sucesso, e antes de tudo o que “Moonlight” merecidamente recebeu e deve receber.
Meu último parágrafo é: por que a comunidade LGBT não exaltou este filme como um dos grandes acontecimentos do último ano? Se até a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas soube usá-lo para amenizar o caso #oscarssowhite, e ainda por cima, com o prêmio máximo do evento? Será que a história de um homem gay, pobre e negro não causa tanta empatia quanto a história dos cowboys vintage de "Brokeback Mountain" (2005)? Além de ser uma grande bandeira contra o governo atual dos EUA. Tem negro e ainda por cima gay!!! Tudo contra a política homofóbica de Trump.
Minha última frase é: me identifiquei de imediato com esse personagem.
E uma observação: a companhia foi incrível!